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Crítica ao argumento fazendário do "contrato misto" (locação de bens + fornecimento de mão


Após inúmeros embates judiciais envolvendo os contribuintes e a Fazenda Pública em torno da tributação do Imposto Sobre Serviços ("ISS") sobre a locação de bens móveis, houve a consolidação de jurisprudência favorável aos contribuintes nos Tribunais Superiores, no sentido de reconhecer-se a não incidência do aludido imposto municipal sobre tais "serviços".


Chegou-se, enfim, à conclusão de que a locação de bens tem por essência uma legítima obrigação de dar, estando fora do campo de incidência do ISS, que incide apenas sobre as chamadas obrigações de fazer (prestações de serviços), consoante já decidido pelo Supremo Tribunal Federal:


"TRIBUTO - FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glossar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS - CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviço revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável - artigo 110 do Código Tributário Nacional." (Supremo Tribunal Federal, RE n.º 116.121-3/SP, Pleno, Rel. p/ o acórdão o Min. Marco Aurélio de Mello, julg. Em 11.10.2000, DJU de 25.5.2001)


Assim, enquanto as obrigações de dar consistem na entrega de uma coisa móvel ou imóvel, para a constituição de um direito real (venda, doação, etc.), concessão de uso (empréstimo, locação) ou restituição ao dono; as de fazer consistem em todas as prestações que não se compreendem entre as de dar e têm, na verdade, por objeto um ou mais atos, ou fatos do devedor, como trabalhos materiais ou intelectuais. A doutrinadora civilista Maria Helena Diniz [1], assim define:


"A obrigação de fazer é a que se vincula o devedor à prestação de um serviço como ato positivo, material ou imaterial, seu ou de terceiro, em benefício do credor ou de terceira pessoa."

Logo, do quanto exposto acima, já se pode concluir que uma obrigação ou será de dar ou de fazer, tendo em vista que esta última é conceituada, por exclusão, como sendo toda aquela prestação não consistente em uma obrigação de dar.


Resta evidente ponderar, portanto, que o cerne da materialidade da hipótese de incidência do ISS não corresponde ao "serviço" em si, mas a uma "prestação de serviço", compreendendo um negócio (jurídico) pertinente a uma obrigação de "fazer", em conformidade com os postulados e diretrizes do direito privado, até porque o Direito Tributário consiste em um direito de superposição, incidindo sobre realidades postas por outros ramos do direito, nos termos do artigo 110, do Código Tributário Nacional, que possui eficácia de lei complementar:


"Art. 110 - A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias."


Tais conclusões foram adotadas tendo como prisma de análise a Lei Complementar n.º 56/87 e o Dec. Lei n.º 406/68.


Referida matéria, ao que parecia, já se encontrava praticamente incontroversa, ainda mais quando da publicação da Lei Complementar n.º 116, de 31 de julho de 2003, que passou a reger a incidência do ISS, o Presidente da República vetou o item 3.01., da nova Lista Anexa de serviços, excluindo, legalmente, o item "locação de bens" como fato gerador do sobredito imposto municipal, o que, anteriormente, estava previsto no item 79, da Lei Complementar n.º 56/87, reconhecidamente inconstitucional.


Pois bem, recentemente, a Fazenda Pública vem defendendo a tese da formação do contrato misto, albergando todos os contribuintes, pessoas físicas ou jurídicas, que pratiquem a locação de bens móveis com fornecimento de material humano, entendendo, nesse particular, pela existência não só da locação de bens, pura e simplesmente, mas também do fornecimento de mão-de-obra, fato gerador do ISS, nos termos da novel Lei Complementar n.º 116/03.


Tal entendimento, a nosso ver, é manifestamente inconstitucional, porque fere, de morte, o conceito constitucional de serviços, então encartado no artigo 156, inciso III, da Carta Magna, até porque, de acordo com o entendimento fazendário do contrato misto, há uma inaceitável decomposição da obrigação de dar: locar bens.


Cumpre ressaltar, antes de tudo, que o argumento fazendário do chamado contrato misto foi formulado para embasar a incidência do ISS sobre a locação de bens móveis, mesmo sob o pálio da LC n.º 116/03 que, como visto, afastou a locação como fato jurídico tributário do imposto em questão.

Ora, tal conclusão não resiste à profunda análise da real base de cálculo para composição da incidência do ISS, uma vez que a realidade mostra inúmeras situações onde sempre reinará o conflito tributário se utilizar-se unicamente conceitos econômicos, ao invés dos imprescindíveis critérios jurídicos, tais como os exemplos citados por José Eduardo Soares de Melo [2]:


"a) o fornecimento de argamassa para uma obra de construção civil constitui material auxiliar de prestação de serviços; enquanto a argamassa vendida em loja caracteriza mercadoria;

b) o remédio ou a alimentação fornecida ao paciente hospitalar não se qualifica como mercadoria, mas bem utilizado na prestação de serviço médico;

c) o garçon que serve fregueses do restaurante não realiza a prestação de serviços, mas participa do fornecimento de alimentação (mercadoria);"


Vê-se que, nos exemplos acima, os bens materiais utilizados têm maior ou menor importância em razão dos negócios realizados, adquirindo, em todos os casos, uma conotação própria, qual seja, servem apenas como meros instrumentos à atividade principal desempenhada por cada contribuinte.

É o mesmo caso das empresas locadoras de bens móveis com agregação de material humano, cuja primordial atividade contratada é a locação de bens. Ao ceder o motorista, por exemplo, mero integrante do bem locado, essas empresas não estão a fornecer mão-de-obra, o que ocorreria se cedesse o condutor isoladamente.


Nesse passo, o entendimento fazendário parece fazer crer que o Sujeito Ativo da relação tributária sempre procurará os serviços principais não elencados em lei complementar (que já são poucos) para, assim, decompô-los, tributando separadamente cada atividade, etapa, processo ou fase secundária, como se cada uma delas correspondesse a um serviço autônomo, independente, incorrendo em inaceitável aberração jurídica, além de desconsiderar-se a hipótese de incidência do próprio ISS.


Deve-se transcrever a valiosa lição de Aires Fernandino Barreto [3] a respeito:


"Alvo de tributação é o esforço humano prestado a terceiros como fim ou objeto. Não as suas etapas, passos ou tarefas intermediárias, necessárias à obtenção do fim. Não a ação desenvolvida como requisito ou condição do facere (fato jurídico posto no núcleo da hipótese de incidência do tributo).

As etapas, passos, processos, tarefas, obras são feitas, promovidas, realizadas ''para'' o próprio prestador e não para ''terceiros'', ainda que estes os aproveitem (já que, aproveitando-se do resultado final, beneficiam-se das condições que o tornaram possível)."


Logo, sem sombra de dúvidas, deve-se considerar, sempre, para fins de tributação, o negócio jurídico objetivado pelas empresas locadoras, a locação de bens, sob pena de inviabilizar tal atividade.


Entendemos, assim, que a postura recentemente adotada pela Fazenda Pública, no sentido de passar a tributar a locação de bens com base na configuração do "contrato misto", fere o conceito constitucional de serviço, tão bem formulado por Geraldo Ataliba e Aires Fernandino Barreto [4]:

"é a prestação de serviço de esforço humano a terceiros, com conteúdo econômico em caráter negocial, sob regime de Direito Privado, tendente à obtenção de um bem material ou imaterial"


Pensar o contrário, significa ampliar tal conceito constitucional, alcançando situações que não configuram uma obrigação de fazer. Não há caráter negocial de fornecimento de mão-de-obra na locação de bens móveis, posto que a agregação de material humano ou outro, de caráter secundário, acessório, não tem o condão de desvirtuar a própria natureza da locação.


A malsinada regra do "contrato misto", portanto, não pode ser aplicada no caso do serviço ser considerado como atividade-meio (fornecimento de mão-de-obra), sem completa autonomia da obrigação principal.



NOTAS


1 DINIZ, Maria Helena. "Curso de Direito Civil Brasileiro", 2.º vol., 9.ª ed., Saraiva, 1995, p. 85.

2 MELO, José Eduardo Soares de. "ISS – Aspectos Teóricos e Práticos", 3.ª ed., Dialética, 2003, pgs. 41/42.

3 BARRETO, Aires. "ISS – Atividade-meio e Serviço-fim". Revista Dialética de Direito Tributário n.º 5, p. 83.

4 apud CHIESA, Clélio. "O critério espacial do ISSQN e a questão da sua incidência ou não sobre a locação de bens moveis". in http://www.chiesa.com.br/artigos/index2.htm


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